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Amor romântico: um ideal a ser superado

  • Foto do escritor: Débora Palma
    Débora Palma
  • 5 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Falar sobre amor é uma das coisas mais poderosas na sociedade - e uma das que mais se vende. Existe um ideal do que é amar, de qual parceiro amar, e de como amar. Geralmente, o ideal é o do amor romântico. Precisamos considerar, no entanto, que o amor é uma construção social e que, a depender do momento histórico, se apresenta de forma diferente.


O problema, no entanto, não são expressões românticas (presentear com flores? com chocolates? café-da-manhã na cama?), mas as falsas expectativas alimentadas na idealização da pessoa amada, que deve ter conduta adequada às expectativas do outro. Atenção! No fim, relaciona-se muito mais com uma projeção do que com uma pessoa real.


Porém, estamos em um processo de profundas mudanças de mentalidade - sendo a busca da individualidade uma marca profunda de nossa época. A grande viagem do ser humano é para dentro de si mesmo: cada um quer saber quais são suas possibilidades na vida e desenvolver seu potencial. E o amor romântico propõe o exato oposto disso: ele prega que os dois se fundam e se transformem em um só ser. Consigo ver aqui um apagamento do "eu" para a construção subjetiva de um "nós" - processo que parece doloroso e capaz de encobrir as necessidades de uma pessoa.

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O tempo vai mostrando que essa forma de amor, no entanto, é inconveniente, pois é difícil resistir à convivência diária. Além disso, a intimidade mostrará quem a pessoa realmente é - seus anseios, seu modo de viver, suas expectativas. Opa! Rompe-se com o "ideal de ser", e geralmente a pessoa tem a sensação de que foi enganada. Some-se o tédio e o desencanto e está pronta a percepção de que, enfim, aquele relacionamento é um relacionamento fracassado, incapaz de suprir demandas emocionais, físicas e sociais de uma das partes. É comum, nestes casos, que um se torne violento ou indiferente; pode haver traição de um deles (ou dos dois). Quando percebemos que o outro não é a personificação das nossas fantasias, nos ressentimos.


Quais as atitudes e ideais do amor romântico? Que duas pessoas se transformam numa única, havendo complementação total entre elas, sem nada lhes faltar. E abarca ainda outras expectativas que não são realistas: que quem ama, não sente desejo sexual por mais ninguém; que o amado é a única forma de interesse do outro; que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.


O ideal está rompido. O desencanto é óbvio.

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Photo by Sharon McCutcheon

Após a Antiguidade, o cristianismo estabeleceu um hiato em que o amor se voltou para Deus - o amor supremo era o amor caritas, um amor de Deus e para Deus; um amor eterno, muito endossado por pensadores como Santo Agostinho, que via no amor casto como a possibilidade de atingir o plano sagrado.


O amor romântico só ressurgiu no século XII, com os trovadores, nobres pertencentes à corte de Provença, na França. Surge a poesia trovadoresca e o ideal da mulher bela, com virtudes e dignidade espiritual, e seu príncipe. O amor romântico mais tarde se irradiou por outras regiões e classes sociais da Europa medieval, transformando o comportamento de homens e mulheres. Só passou a ser uma opção no matrimônio no século XIX, depois da Revolução Industrial, quando se formou a familia nuclear - pai, mãe, filhos. Como fenômeno de massa, aparece nos anos 1940, época em que todos desejavam se casar, inspirados nos filmes de Hollywood.


A contemporaneidade, com seu ideal de individualidade e mergulho profundo em necessidades pessoais, não busca o amor romântico e sua proposta de fusão - afinal, o objetivo pessoal, hoje, segue o caminho inverso.


Não é de hoje que a humanidade repensa sua forma de amar: a partir dos anos 1960, com o surgimento da pílula e os movimentos contracultura - feminino, gay, hippie - levaram ao rompimento dos modelos tradicionais da relação afetiva. O sociólogo inglês Anthony Giddens chama de "transformação da intimidade" o fato de milhares de homens e mulheres ocidentais estarem tomando consciência da importância de desaprender a amar.


Sim, o amor romântico está saindo de cena e levando com ele sua principal característica: a exigência da exclusividade. Abre-se espaço assim para novos arranjos, como o das relações livres, sem compromisso com a fidelidade, do amor a três, do poliamor. Aos que não acreditam nessa possibilidade, basta visitar os anos 1950 e 1960. Se naquele tempo alguém dissesse que um dia seria natural as moças não se casarem virgens, seria tachado de irresponsável. Afirmariam que a sociedade não estava pronta para tal reviravolta. A virgindade era pré-condição para o casamento. O mesmo ocorreria a respeito da separação de um casal, vista então como tragédia familiar (nesse ponto, é possível fazer um paralelo com a erótica platônica da Antiguidade, que buscava submeter o sujeito às necessidades da polis, ou seja, tratava-se de uma estratégia política: manter a família era fundamental, pois era sobre ela que a sociedade estava baseada. A separação de um casal era encarada como um problema social. Além disso, o adultério e a esterilidade - principalmente se fosse da esposa - também ia de encontro ao ideal social buscado).


Quem poderia admitir que, décadas depois, esses comportamentos se tornariam tão comuns?

E, claro, eu não poderia deixar de recomendar mais leituras para vocês!


A Regina Navarro Lins é uma psicanalista e autora que admiro muito e já conheço a obra dela há alguns anos. Ela diz que uma das maiores demandas de seus clientes era falar sobre questões relacionadas a amor, sexo e relacionamentos: afetividade, traição, fidelidade, sofrimento, felicidade. Essas questões, tão humanas, tão nossas, precisam ser estudadas com alguma frequência, para que possamos entender melhor a forma como nos relacionamos com os outros e com nós mesmos, entendendo quais são as nossas verdadeiras necessidades - e se, enfim, precisamos ou não aderir aos ideais românticos.


LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo – novas tendências. Ed. rev. E ampliada. 7ª ed. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.

LINS, Regina Navarro. O livro do amor, Volume 1: da Pré-história à Renascença. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.

LINS, Regina Navarro. O livro do amor, Volume 2: do Iluminismo à atualidade. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.


Os "livros do amor", nos volumes 1 e 2 trazem a perspectiva histórica sobre como as relações entre pessoas foram sendo (re)definidas. Um passeio em perspectiva como esse, numa leitura tão fluida, me ajudou a compreender a sociedade como é constituída hoje, com todas as suas nuances e formas de normatizar comportamentos entre seres humanos.


Vejam também este artigo, que abordará a perspectiva histórica da constituição do amor e das relações.


GUEDES, Dilcio; ASSUNCAO, Larissa. Relações amorosas na contemporaneidade e indícios do colapso do amor romântico (solidão cibernética?). Rev. Mal-Estar Subj.,  Fortaleza ,  v. 6, n. 2, p. 396-425, set.  2006 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482006000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em  05  nov.  2020.


Também podemos pensar nas novas configurações amorosas provocadas pela tecnologia: relacionamentos a distância, pessoas que se conhecem pela internet e os apps de namoro e relacionamento.


Só fico imaginando que outras mudanças virão por aí... 😃!







 
 
 

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